Alteração extrajudicial do regime de bens na união estável: autonomia e segurança dos conviventes

 Constituição brasileira de 1988 contempla diferentes formas de entidades familiares, além da que resulta do casamento1. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas2. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”3, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e consequências da união estável heterossexual4. O Código Civil, por sua vez, dedica poucos dispositivos à união estável, não obstante o seu expresso reconhecimento como entidade familiar no § 3?, do art. 226, da Constituição da República.5

Indispensável ressaltar que a união estável é uma situação de fato, a qual, atendidos os requisitos legais, é reconhecida como entidade familiar apta a gerar efeitos existenciais e patrimoniais previstos no Código Civil. Por conseguinte, os requisitos devem ser identificados na dinâmica da convivência cotidiana do casal que se une para constituir uma família. Nos termos do art. 1.723 da Lei Civil, o “objetivo da convivência deve ser a constituição de uma família, isto é, de uma comunhão de vida com estabelecimento de laços que se estendem a terceiros, por força da lei, e que independe do intuito de procriar”6. Observa-se, portanto, que nos efeitos que derivam da relação entre os conviventes se aproxima do casamento, como, por exemplo, o regime sucessório7, eis que informado pela solidariedade familiar. Enquanto a forma permanece como discrímen entre as entidades familiares, dado que o casamento, em sua feição de ato jurídico, “pressupõe uma profunda e prévia reflexão de quem o contrai, daí decorrendo uma série de efeitos que lhe são próprios – dada a certeza e segurança que oferece”.8

 Cabe pontuar que o art. 1.725 autoriza eventual “contrato escrito entre os companheiros” para reger suas relações patrimoniais, estabelecendo regime supletivo (comunhão parcial de bens) em sua ausência. Desse modo, o denominado contrato de convivência não constitui requisito para a configuração da união estável, mas apenas prova de sua existência. Apesar das recentes críticas relativas à aproximação entre a tutela dos cônjuges e companheiros, a possibilidade de alteração extrajudicial do regime de bens aos conviventes parece confirmar a distinção entre as entidades familiares, a permitir maior liberdade aos integrantes da união estável, em razão da natureza fática da convivência, que independe de manifestação de vontade no sentido de constituição da comunhão familiar, bastante diverso do casamento.

Nessa linha, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento 141/23, o qual, ao alterar o Provimento 37/14, suscintamente, regulamentou o registro da União Estável nos Registros Civis de Pessoas Naturais, em consonância com o art. 94-A da lei 14.382/22, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP). Dentre as novidades, previu a possibilidade de os conviventes promoverem a alteração do regime de bens através de procedimento extrajudicial, isto é, direto no Registro Civil de Pessoas Naturais. Pouco depois, através do Provimento 149/23, fora publicado o Código de Normas do Foro Extrajudicial da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, diploma esse que consolida todos os atos normativos relativos aos serviços notariais e registrais, dentre os quais o do registro e alteração de regime de bens da união estável nos arts. 537 ao 553, mantendo-se a redação do Provimento anterior.

O Provimento 141/23, posteriormente englobado no Código de Normas do CNJ, regulamentou três pontos quanto à união estável: (i) registro no RCPN e a regulamentação do termo declaratório; (ii) alteração de regime de bens pela via extrajudicial; (iii) conversão em casamento. Em linhas gerais, convém compreender os objetivos da Corregedoria Nacional com a aludida regulamentação. Isso porque, sem interferir na constituição da união estável, a qual possui natureza de convivência de fato – permita-se a insistência, o que afasta necessidade de qualquer solenidade, tal como ocorre no casamento, a faculdade conferida aos conviventes de promover o registro da união estável, no Livro E do RCPN, garante a publicidade do ato e, por conseguinte, a produção de efeitos jurídicos da entidade familiar perante terceiros. Indiscutível, portanto, a finalidade da regulamentação de formalizar a união estável existente, conferindo-lhe eficácia erga omnes.

Com fins a atingir esse objetivo, alguns requisitos formais são exigidos, como o título a ser apresentado – sentenças judiciais, escrituras públicas e termos declaratórios formalizados perante o RCPN (este criado pela Lei do SERP e regulamentado pelo CNJ) – e a necessidade de ser requerido por ambos os conviventes, no intuito de trazer maior confiabilidade ao ato praticado e, por conseguinte, evitar eventuais vícios de consentimento ou fraudes quando da sua prática. Por sua vez, em relação à alteração do regime de bens extrajudicialmente, há de se ter como premissa que o ordenamento jurídico tutela e promove a autonomia privada, em especial no ambiente familiar, núcleo íntimo das relações afetivas, impondo-se a intervenção mínima do Estado nas relações familiares, desde que assegurada a igualdade substancial entre os integrantes daquela entidade em homenagem à liberdade de escolha das pessoas.

Não se olvida, contudo, da preocupação quanto à proteção do direito ao livre desenvolvimento da personalidade dos integrantes da relação convivencial, o que autoriza a restrição à autonomia do casal para a garantia da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, atendidas essas premissas, as demais questões, sobretudo existenciais, devem ser livremente convencionadas entre as partes a fim de se adequar a realidade familiar em concreto. A incidência da axiologia constitucional nas relações familiares, permite, inclusive, como defende boa doutrina, “antever, de maneira prospectiva, linha de tendência a retirar da competência do Judiciário procedimentos que, como a alteração do regime de bens, poderiam ser levados a cabo diretamente pelas partes”.9

Indiscutível que a regulamentação pelo CNJ que permitiu a alteração extrajudicial de regime de bens na união estável trouxe relevante inovação que há de ser reconhecida, pois em sintonia com a tendência de desjudicialização de procedimentos de jurisdição voluntária, já introduzida no direito pátrio desde a edição da lei 11.441/07, que dispôs sobre a possibilidade de realização do divórcio, além da partilha de bens, pela via extrajudicial. Torna-se ainda mais consentâneo com os anseios da sociedade contemporânea quando diante de entidade familiar cuja essência é a informalidade dos atos para sua constituição, manutenção e dissolução, que caracteriza a união estável como convivência fática.

O Código de Normas do CNJ caminha, portanto, ao encontro da chamada “desregulamentação das relações conjugais”10, a partir da qual, cada vez mais, privilegia-se a expressão das liberdades de escolhas do casal. Dentre as relevantes inovações trazidas, há o afastamento de controverso requisito legal previsto no art. 1.639, § 2º, do Código Civil, que versa sobre o processo judicial de alteração de regime de bens no casamento, relativo à necessidade de comprovação de justo motivo, cuja exigência afronta a intimidade do casal, o qual é exposto e submetido a uma interferência exacerbada e indevida do Estado11. Abandona-se o elevado grau de subjetividade do que seria “justo motivo”, inclusive porque a necessidade de motivação inverte a presunção de boa-fé. Assim, basta que ambos os conviventes compareçam (pessoalmente ou por procurador constituído) ao registro civil das pessoas naturais de livre escolha e, sem qualquer necessidade de justificação, requeiram a modificação, cabendo apenas a consignação de forma expressa que “a alteração do regime de bens não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime de bens” (art. 547, § 1º).

Igualmente, se assim desejarem, poderá ser promovida a partilha dos bens no momento da alteração12, hipótese que será indispensável a assistência de advogado ou defensor público. Além do mais, diante da formalidade exigida quando da partilha do patrimônio amealhado, principalmente se existentes bens imóveis, além de envolver apuração de eventual imposto de reposição devido ao ente fiscal (municipal ou estadual a depender se feito de forma onerosa ou gratuita), torna impossível ser promovida no próprio requerimento apresentado ao registro civil. Cabe, portanto, a lavratura de escritura pública, notadamente, mas não apenas, se enquadrada na hipótese do artigo 108 do Código Civil, para formação de título a fim de que possa ser apresentado nos respectivos órgãos para transferência de titularidade.

A modificação do regime de bens apenas produzirá efeitos futuros, ou seja, não atingirá bens anteriores a data da alteração, exceto se a mudança desejada seja para o regime da comunhão universal de bens, posto ser inerente deste tipo que seus efeitos atinjam todos os bens existentes no momento da averbação do ato praticado13, ressalvados apenas os direitos de terceiros em nome da segurança jurídica.

Por outro lado, o Código de Normas do CNJ ainda apresenta resquícios da arraigada e acentuada preocupação em proteger interesses de terceiros, o que inverte a presunção de boa-fé, a qual há de ser comprovada pelos conviventes, e revela que certas exigências discrepam de princípios basilares do ordenamento jurídico. Tal crítica é direcionada, sobretudo, à redação do art. 548, mormente os incisos I a III14, ao elencar as certidões pessoais dos conviventes que deverão ser apresentadas, quais sejam, as dos distribuidores cíveis e fiscais, dos tabelionatos de protestos e da Justiça do Trabalho. De todo relevante gizar que a discussão sobre o tema não repousa na ausência de preocupação pela preservação do legítimo interesse de terceiros de boa-fé, uma vez que não há de se cogitar a possibilidade que a mudança do regime de bens prejudique tais indivíduos.

O que se discute, a rigor, é se o risco de eventual prejuízo a terceiro pode ser a justificativa para essas exigências ou se, na realidade, a aludida modificação terá como consequência a não produção de efeitos para esse terceiro lesado. Isso porque, tal como erroneamente interpretado por parte dos Tribunais quando do julgamento de ações acerca do tema, o art. 1.639, § 2º, do Código Civil, que versa sobre a alteração do regime de bens no casamento, a proteção a terceiros de boa-fé não se encontra no plano da validade do ato praticado, mas sim como fator de eficácia15, de forma que não pode ser considerado como requisito para promover a alteração do regime de bens, seja na união estável ou no casamento.

Além do mais, o extenso rol de certidões pessoais – o qual inclusive ultrapassa em muito as que são exigidas para prática de atos de disposição (gratuito ou oneroso) de bens imóveis16 – que se limita as certidões fiscais -, é, no final, inócuo e desarrazoado diante da expressa previsão esculpida logo no primeiro dispositivo do capítulo acerca da sua ineficácia perante terceiros prejudicados pela prática do ato.17

Vale observar que, no momento da lavratura de escritura pública para promover a transferência de bens imóveis, inclusive de forma gratuita, são dispensadas as certidões de distribuidores cíveis (feitos ajuizados) desde a edição da Lei n. 13.097/2015 e, antes mesmo disso, sequer havia previsão legal acerca das certidões dos tabelionatos de protestos. Como registra doutrina abalizada, mesmo que o objetivo da alteração seja lesionar terceiros, a própria ineficácia perante a esses obstará sua concretização, já que continuará prevalecendo a disposição anterior.18

Dessa forma, se as alterações no regime de bens não prejudicarão legítimos interesses de terceiros, indubitavelmente há de se questionar qual seria o fundamento de tais exigências, o que, inclusive, tem como consequência a necessidade de contratação de advogado para a prática do ato, onerando em demasia os conviventes. Contraditoriamente, o mesmo Código de Normas, ao regulamentar a conversão da união estável em casamento, quando promovida a alteração do regime de bens, não exige a apresentação dessas certidões elencadas no art. 548, mas tão somente a declaração de que o “ato não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existam antes da alteração do regime” (art. 549, inciso IV). O tratamento diferenciado para atos que produzirão efeitos idênticos não tem amparo no ordenamento jurídico, o que descortina a promoção da desburocratização em ambos os momentos e não apenas quando da conversão em casamento. Além do mais, tanto na alteração como na conversão, terceiros estarão igualmente protegidos diante da ineficácia se constatado prejuízo aos seus legítimos interesses.

Em termos gerais, a regulamentação da alteração extrajudicial do regime de bens na união estável atende à natureza fática da convivência informal, a qual se distancia do casamento como ato jurídico formal e solene. A desjudicialização do procedimento e a inexigibilidade do “justo motivo” – ainda presente na Lei Civil nas hipóteses de mudança do regime de bens entre cônjuges – atende, a um só tempo, a promoção da autonomia dos conviventes na esfera patrimonial e a preservação dos interesses de terceiros, em consonância com a mínima intervenção estatal nas relações familiares e a privacidade na condução da vida conjugal, caros valores à legalidade constitucional.

Portanto, não há dúvidas que as modificações realizadas pelo Provimento 141/23 e posteriormente englobadas pelo Código de Normas da Corregedoria Nacional caminham para atender as demandas das famílias contemporâneas. Contudo, tal regulamentação não é imune a controvérsias, de forma que persiste a equivocada prevalência de eventuais interesses de terceiros sobre a autonomia dos conviventes e a forte burocratização do procedimento, calcadas na errônea presunção de má-fé e a exigência de comprovação de boa-fé. Diante de terceiros já terem seus direitos protegidos pela ineficácia de atos que os prejudiquem, há de se inquirir se essa interferência na vida privada dos conviventes é realmente indispensável ou se, na prática, não causa mais danos ao afrontar preceitos tão caros para o ordenamento jurídico do que promove garantias às partes e terceiros.

FONTE: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-patrimoniais/396589/alteracao-extrajudicial-do-regime-de-bens-na-uniao-estavel